Hoje, uma estória...
Uma estória do tempo em que as pessoas compravam e liam livros.
Tempo em que as pessoas escreviam cartas, cartas de amor.
Mas nada mudou, apesar dos avanços, das modernidades,
que substituiram tudo isso pela Internet.
Por que?
Porque muitas pessoas ainda valorizam muito mais o exterior que o interior dos outros...
Que é justamente onde mora o encantamento.
Esquecendo que todos queremos alguém, que realmente se importe com a gente, não importando como somos, ou nossa aparência.
Sendo assim, vamos à estória.
Espero que sirva pra tuas reflexões de segunda-feira
UMA LINDA ESTÓRIA DE AMOR
John Blanchard levantou do banco,
endireitando a jaqueta de seu uniforme
e observou as pessoas fazendo seu caminho
através da Grand Central Station.
Ele procurou pela garota
cujo coração ele conhecia
mas o rosto não;
a garota com a rosa.
Seu interesse por ela
havia começado trinta meses antes,
numa livraria da Florida.
Tirando um livro da prateleira,
ele se pegou intrigado,
não com as palavras do livro,
mas com as notas feitas á lápis
nas margens.
A escrita suave
refletia uma alma profunda
e uma mente cheia de brilho.
Na frente do livro,
ele descobriu o nome
do primeiro proprietário:
Srta. Hollis Maynell.
Com tempo e esforço
ele localizou seu endereço.
Ela vivia em New York City.
Ele escreveu a ela uma carta,
apresentando-se e convidando-a
a corresponder-se com ele.
Na semana seguinte
ele embarcou num navio
para servir na II Guerra Mundial.
Durante o ano seguinte,
mês a mês eles desenvolveram
o conhecimento um do outro
através de suas cartas.
Cada carta era uma semente
caindo num coração fértil.
Um romance de companheirismo.
Blanchard pediu uma fotografia,
mas ela recusou.
Ela queria que ele realmente
se importasse com ela,
não importando como ela era,
ou sua aparência.
Quando finalmente chegou o dia
em que ele retornou da Europa,
eles marcaram seu primeiro encontro
- 7:00 da noite na Grand Central Station em New York.
"Você me reconhecerá"
ela escreveu,
pela rosa vermelha
que estarei usando na lapela",
Então, ás 7:00 ele estava na estação,
procurando por uma garota
cujo coração ele amava,
mas cuja face
ele nunca havia visto.
...
Vou deixar o Sr.Blanchard
dizer-lhe o que aconteceu:
"Uma jovem aproximou-se de mim.
Sua figura era alta e magra.
Seus cabelos loiros
caíam delicadamente
sobre os seus ombros,
seus olhos eram verdes como água.
Sua boca era pequena
e seus lábios carnudos,
e seu queixo tinha uma firmeza delicada.
Seu traje verde pálido
era como se a primavera tivesse chegado.
Eu me dirigi a ela,
inteiramente esquecido
de perceber que ela
não esta usando uma rosa.
Como eu me movi em sua direção,
um pequeno, provocativo sorriso,
curvou seus lábios.
"Indo para o mesmo lugar que eu marinheiro?"
-ela murmurou.
Quase incontrolavelmente
dei um passo pra junto dela,
e então eu vi Hollis Maynell.
Ela estava parada
quase que exatamente
atrás da garota.
Uma mulher já passada dos 50 anos,
ela tinha seus cabelos grisalhos
enrolados num coque
sob um chapéu gasto.
Ela era mais que gorduchinha,
seus pés compactos
confiavam em sapatos
de saltos baixos.
A garota de verde
seguiu seu caminho
rapidamente.
Eu me senti como se tivesse
sido dividido em dois,
tão forte era meu desejo de segui-la
e tão profundo era o desejo
por aquela mulher
cujo espirito
verdadeiramente me acompanhara
e me sustentara através
de todos as minhas atribulações.
E então ela parou.
Sua face pálida e gorducha
era delicada e sensível,
seus olhos cinzas
tinham um calor e simpatia
cintilantes.
Eu não hesitei.
Meus dedos seguraram
a pequena e gasta capa
de couro azul do livro
que a identificou para mim.
Isto podia não ser amor,
mas poderia ser algo precioso,
talvez mais que amor,
uma amizade pela qual
eu seria para sempre
cheio de gratidão.
Eu inclinei meus ombros,
cumprimentei-a
mostrando o livro para ela,
ainda pensando,
enquanto falava,
na amargura do meu desapontamento.
"Sou o Tenente John Blanchard,
e você deve ser a Srta. Maynell.
Estou muito feliz que tenha
podido me encontrar.
Posso lhe oferecer um jantar?"
O rosto da mulher
abriu-se num tolerante sorriso.
"Eu não sei o que está acontecendo",
ela respondeu,
"Aquela jovem de vestido verde
que acabou de passar
me pediu para colocar
esta rosa no casaco.
E ela disse que
se você me convidasse pra jantar,
eu deveria lhe dizer
que ela está esperando por você
no restaurante da esquina.
E ela disse que isso
era um tipo de "TESTE"!
Não pareceu difícil, pra mim,
compreender e admirar
a sabedoria da Srta. Maynell.
Porque a verdadeira natureza
do coração de uma pessoa
é vista na maneira como
ela responde
ao que não é atraente!
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é sobre isso,
não é moça bonita
do sorriso de luz?
Porque uma pessoa é bela,
não pela beleza dela,
mas pela beleza nossa
que se reflete nela...
o Segredo do amor que não se apaga nunca: a arte de fazer amor com a boca e os ouvidos
AS MIL E UMA NOITES
O encantamento começa com o título que,a sua beleza particular se deve ao fato de que a palavra mil é, para nós, quase sinônimo de infinito. "Falar em mil noites é falar em infinitas noites. E dizer mil e uma noites é acrescentar uma além do infinito."
As mil e uma noites são a estória de um amor - um amor que não acaba nunca. Não existe ali lugar para os versos imortais do Vinícius (tão belos que o próprio Diabo citou em sua polêmica com o Criador): "Que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure..." Estas são palavras de alguém que já sente o sopro do vento que dentro em pouco apagará a vela: declaração de amor que anuncia uma despedida.
Mas é isto que quem ama não aceita. Mesmo aqueles em quem a chama se apagou sonham em ouvir de alguém, um dia, as palavras que Heine escreveu para uma mulher: "Eu te amarei eternamente e ainda depois." É preciso que a chama não se apague nunca, mesmo que a vela vá se consumindo. A arte de amar é a arte de não deixar que a chame se apague. Não se deve deixar a luz dormir. É preciso se apressar em acordá-la (Bachelard). E, coisa curiosa: a mesma chama que o vento impetuoso apaga volta a se acender pela carícia do sopro suave...
"As mil e uma noites" são uma estória da luta entre o vento impetuoso e o sopro suave. Ela revela o segredo do amor que não se apaga nunca.
Um sultão, descobrindo-se traído pela esposa a quem amava perdidamente, toma uma decisão cruel. Não podia viver sem o amor de uma mulher. Mas, também, não podia suportar a possibilidade da traição. Resolve, então, que iria se casar com as moças mais belas dos seus domínios, mas depois da primeira noite de amor, mandaria decapitá-las. Assim o amor se renovaria a cada dia em seu vigor de fogo impetuoso, sem nenhum sopro de infidelidade que pudesse apagá-lo. Espalham-se logo, pelo reino, as notícias das coisas terríveis que aconteciam no palácio real: as jovens desapareciam, logo depois da noite nupcial. Xerazade, filha do vizir, procura então o seu pai e lhe anuncia sua espantosa decisão: desejava tornar-se esposa do sultão.
O pai, desesperado, lhe revela o triste destino que a aguardava, pois ele mesmo era quem cuidava das execuções. Mas a jovem se mantém irredutível.
A forma como o texto descreve a jovem Xerazade é reveladora. Quase nada diz sobre sua beleza. Faz silêncio total sobre o seu virtuosismo erótico. Mas conta que ela lera livros de toda espécie, que havia memorizado grande quantidade de poemas e narrativas, que decorara os provérbios populares e as sentenças dos filósofos.
E Xerazade se casa com o sultão. Realizados os atos de amor físico que acontecem nas noites de núpcias, quando o fogo do amor carnal já se esgotara no corpo do esposo, quando só restava esperar o raiar do dia para que a jovem fosse sacrificada, ela começa a falar. Suas palavras penetram os ouvidos vaginais do sultão. Suavemente, como música. O ouvido é feminino, vazio que espera e acolhe, que se permite ser penetrado. A fala é masculina, algo que cresce e penetra nos vazios da alma. Segundo antiquíssima tradição, foi assim que o deus humano foi concebido: pelo sopro poético do Verbo divino, penetrando os ouvidos encantados e acolhedores de uma Virgem.
O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Xerazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo tenha se esvaziado do seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada: não é eterno, posto que é chama. E então, quando as chamas dos corpos já se haviam apagado, Xerazade sopra suavemente. Fala. Erotiza os vasios adormecidos do sultão. Acorda o mundo mágico da fantasia. Cada estória contém uma outra, dentro de si, infinitamente. Não há um só orgasmo que ponha fim ao desejo. E ela lhe parece bela. Tão bela. Bela como nenhuma outra. Porque uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela...
Conta a estória que o sultão, encantado pelas estórias de Xerazade, foi adiando a execução, por mil e uma noites, eternamente e um dia a mais.
Não se trata de uma estória de amor, entre outras. É, ao contrário, a estória do nascimento e da vida do amor. O amor vive nesse sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido. A Sônia Braga, ao final do documentário de celebração dos 60 anos do Tom Jobim, disse que o Tom era o homem que toda mulher gostaria de ter. E explicou: "Porque ele é masculino e feminino ao mesmo tempo..." O segredo do amor é a androgenia: somos todos, homens e mulheres, masculinos e femininos ao mesmo tempo. É preciso saber ouvir. Acolher. Deixar que o outro entre dentro da gente. Ouvir em silêncio. Sem expulsá-lo sem argumentos e contra-razões.
Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Alfange que decapita. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais: nunca foram penetrados. E é preciso saber falar. Há certas falas que são um estupro. Somente sabem falar os que sabem fazer silêncio e ouvir. E, sobretudo, os que se dedicam à difícil arte de advinhar: advinhar os mundos adormecidos que habitam os vazios do outro.
As mil e uma noites são a estória de cada um. Em cada um mora um sultão. Em cada um mora uma Xerazade. Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (estes órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual...) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.